PORTOS INVISÍVEIS: NARRATIVAS INVISÍVEIS NA CIDADE DO PORTO
Mapeamento e levantamento do lugar, Porto.
O projeto Portos invisíveis: narrativas invisíveis na cidade do Porto, desenvolvido para a UC RDIT (Representações, desenhos e imagens do território) busca imaginar paralelos entre os espaços construídos da cidade e a obra literária As cidades invisíveis, de Italo Calvino. A partir da busca de estruturas físicas, histórias e palavras um acervo de arquivos foi montado para ilustrar as narrativas invisíveis encontradas, em um mapeamento com o qual se pretende compreender a relação entre a visibilidade construída e a vida que nela se desenvolve.

A poética da literatura de Italo Calvino serve como uma lupa para lançar um olhar apurado não apenas sobre o que se vê, mas sobre o que está invisível, sobre aquilo que não é palpável, mas que confere a cidade seu status de “Símbolo capaz de expressar a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas”¹. Através desta lupa literária desenvolveu-se uma busca no território, marcada pelo cotidiano em que se percorreram lugares e buscaram-se associações pelas palavras e pela história, pela vida e pela memória. As narrativas invisíveis são descobertas pela associação e pela familiaridade, pois o projeto trata-se de uma interpretação artística e pessoal sobre uma obra literária e a paisagem urbana.

Outra componente que caracteriza o trabalho é a geometria e o desenho, a partir do qual as interpretações das palavras tomam forma. O hexágono, forma geométrica escolhida como base para a reprodução dos desenhos e fotografias, simboliza a formação das sociedades, aludindo às colméias de abelhas que se juntam e formam suas colônias em torno de uma rainha. Este símbolo se multiplica sobre a superfície urbana e o agrupamento de vidas e espaços a transforma num palco de contradições e sobreposições.
A materialidade, àquela que compreende os materiais que constroem as cidades e é intrínseca a vida e aos espaços, se manifesta neste trabalho através do uso do acetato, do papel vegetal e da pedra. A transparência do vegetal e do acetato reforça a ideia da sobreposição da memória e do tempo, e a pedra nos recorda daquilo que é permanente e sólido, imutável e resistente. A ironia e a contradição guiam as narrativas invisíveis.
Mapas, desenhos, dobras, fotografias históricas e objetos compõem a coleção desse arquivo que reproduz algumas das diversas metáforas construídas que Marco Polo narra ao imperador Kublai Khan. Nessa imaginativa jornada entre o material e o imaterial são seis as cidades encontradas no Porto: Isaura, Tecla, Zirma, Otávia, Diomira e Clarisse.

Tecla narra a construção, que teme sobretudo a ruína. Os habitantes dessa cidade nunca deixam de “(...) içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo”, pois temem que após a conclusão a cidade comece a destruir-se. A metáfora expõe a contradição da temporalidade sobre a matéria, que após ser concluída já entrará em declínio, inevitavelmente. Existir é estar em decomposição? Para esse território obras que estão no início e no fim da jornada de exploração diária foram escolhidas: ao pé de minha casa. Os desenhos e especulações são inspirados em plantas urbanas e projetos de construção (na cor azul) e demolição (em vermelho), utilizados em gabinetes de arquitetura no Brasil para determinar aquilo que deve ser construído ou demolido.
Diomira simboliza a memória e aquilo que está entre o presente e o passado: a possibilidade. A cidade das sessenta cúpulas de prata torna-se cristalina, uma memória desvanecida do que antes era o Palácio de Cristal, no meio de seus jardins floridos. Sua ausência abre a questão que guia essa narrativa: e se houve no lugar da atual Arena sessenta cúpulas de cristal? A memória é um guia para o futuro, um lembrete, mas pode também ser uma chave para outras histórias que não aconteceram.
Zirma é a narrativa da repetição, que multiplica seus elementos para fixar alguma imagem. Quantas vezes viajamos e nos deparamos com figuras parecidas, semelhantes construções e espaços, pessoas e objetos que nos transportam para outra cidade, em outro país ou continente? Os símbolos se repetem, “A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente”. A partir desse conto podemos imaginar formas de fixar, a partir da repetição, coleções de memórias, pequenos fragmentos de um todo que originam o espaço coletivo, aqui representado pela estação São Bento e arredores.
Otávia é a cidade da passagem, com suas “teias-de-aranha”5. Os trilhos que conectam duas montanhas, situadas sobre um abismo, são a base para a cidade que dela se suspende e que através dela se comunica. A ponte Luís I, símbolo importante da cidade do Porto, conecta lugares, memórias e pessoas física e mentalmente, pois sua existência condiciona os movimentos, mas também as experiências vividas, que se tornam recordações, colecionadas em fotografias e imagens na memória. O que é uma ponte senão uma conexão entre dois mundos, reais ou imaginários?
Isaura é a narrativa da subsistência, sobre a água e a vida em torno deste elemento que condiciona a vida, em todos os seus aspectos. O jardim da Arca d’ Água é o território que dá visualidade a essa história, pois dali partia a água que durante muito tempo abasteceu o Porto. Um grande aqueduto subterrâneo se espalhava de norte para sul, suprindo a necessidade dos moradores da cidade. “Uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível”, como em Isaura, a cidade dos mil poços de Calvino. “Tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas enclausuradas que quebram sob o céu calcário da rocha”.
Permeando todas essas está Clarisse, “(...) cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Diversas vezes decaiu e refloresceu”. Essa narrativa trata da civilização e do percurso da sociedade através do tempo, sempre condicionadas pelos acontecimentos, ora previsíveis, ora inevitáveis. Todo território esta sujeito ao desgaste, ao mofo, a ruína, portanto é possível identificar Clarisse por todos os lados. A adaptação e reutilização do que antes foi uma casa e hoje é um museu, do que no passado foram “(...) os capitéis coríntios que estiveram em cima de suas colunas” e que agora são ruínas para o cesto de um galinheiro. A cidade tenta se reconstruir e se resgatar através de fragmentos avulsos, sobre os quais se sabe pouco e se deduz muito. A tentativa de refazer esse lugar em seu apogeu de glória é capaz apenas de pintar uma caricatura disforme, transformando a autenticidade do agora em uma reprodução incongruente a la Viollet-le-Duc. Estamos todos sujeitos ao apogeu e a queda que o tempo impõe.